
A arte sempre chegou atrasada aos fatos — e, paradoxalmente, antes de tudo. Ela não compete com a notícia, nem com a urgência do acontecimento. Sua função é outra: decantar o conflito, transformar ruído em forma, caos em linguagem. Em tempos de tensões sociais explícitas, a arte reaparece como espelho trágico de uma sociedade que já não consegue se explicar apenas pelo discurso racional.
Feita por humanos, a arte carrega inevitavelmente inclinações, escolhas e silêncios. Não existe obra neutra, assim como não existe olhar desinteressado. Ainda assim, reduzir toda produção artística a um gesto político direto empobrece sua potência. Fala-se muito sobre política — e com razão —, mas nem tudo é política no sentido estrito, ao mesmo tempo em que a política se infiltra no cotidiano, nas relações, nos afetos e nas ausências. É nesse entremeio que a arte opera.
O artista não resolve conflitos sociais; ele os expõe. Ao dramatizar desigualdades, violências simbólicas ou fraturas históricas, a obra não entrega respostas prontas, mas cria zonas de incômodo. A tragédia, desde a Grécia antiga, não serve para ensinar moral, e sim para confrontar o espectador com suas próprias contradições. A arte contemporânea, mesmo quando cotidiana ou aparentemente banal, herda essa vocação trágica: mostrar que algo não está em ordem.
Nesse sentido, a arte funciona como mediadora — não porque apazigua, mas porque cria linguagem onde antes havia apenas enfrentamento bruto. Ela permite que conflitos sociais sejam vistos, sentidos e debatidos para além da lógica binária do “a favor” ou “contra”. Um filme, uma música, uma performance ou uma pintura não substituem o debate público, mas o qualificam ao deslocá-lo do grito para a escuta.
Há, claro, o risco da instrumentalização. Quando a arte se transforma apenas em ilustração de uma tese, perde sua ambiguidade — e com ela, sua força. A boa arte não confirma certezas; ela as tensiona. Ao mesmo tempo, exigir que o artista se afaste completamente do mundo é uma ilusão confortável. A criação nasce do contexto, da experiência social, da fricção com a realidade.
Encerrar o ano pensando na arte como mediação é reconhecer seu papel silencioso em meio às turbulências. Ela não pacifica, mas traduz. Não resolve, mas revela. Em um cenário marcado por conflitos visíveis e latentes, talvez a maior contribuição da arte seja justamente essa: lembrar que, antes de qualquer consenso, é preciso compreender — e sentir — o conflito.
Afinal, quando o discurso falha, a arte permanece como último idioma possível.
